quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

O facilitismo é um conceito pouco exigente.

O facilitismo tem sido uma ideia amplamente divulgada como um sintoma da falta de qualidade do sistema educativo, embora normalmente não seja explicitada uma definição consistente do conceito. Talvez uma das causas da popularidade desta ideia resida precisamente na capacidade de incorporar diferentes fenómenos, sem que todos os que a invocam o façam com o mesmo objetivo.

Considerando o facilitismo como a constatação de uma facilidade excessiva no percurso escolar dos alunos, é razoável admitir que esta suposta facilidade tenha alguma relação com o currículo. O “estreitamento” ou “enviesamento” do currículo - ou uma alteração nas práticas de avaliação que tenham como consequência a produção de avaliações artificiais e pouco fiáveis - é um fenómeno que não deve deixar de preocupar qualquer agente educativo e ser claramente condenado. De resto, um qualquer “estreitamento” ou “enviesamento” do currículo, ou de práticas de avaliação que desvirtue a formação dos alunos, deve ser objeto de análise e reflexão.

Tradicionalmente, a reprovação foi entendida como um elemento de promoção da exigência, sendo o aluno o único, ou o principal, responsável e portanto merecedor da punição - quando não são atingidos os mínimos de exigência definidos pelo currículo. A exigência do currículo contrasta com a falta de ambição do sistema educativo que recorre à reprovação como a forma mais fácil, ou pelo menos a mais frequente, de remediação.
A reprovação é uma medida relativamente fácil quando um problema é identificado e devemos reconhecer que é mais exigente construir alternativas à reprovação.
A consciência da necessidade de aumentar os níveis de literacia funcional para todos os cidadãos, materializou-se no alargamento da escolaridade obrigatória, que implicou novos problemas. A obrigatoriedade de permanência na escola até aos 18 anos conjugada com níveis de retenção elevados constituem um paradoxo cuja necessidade de resolução começa a ganhar centralidade. Não é legítimo exigir que os alunos menos adaptados ao sistema escolar tradicional sejam obrigados a permanecer no mesmo contexto escolar que já os conduziu repetidamente à retenção, sem incluir ajustamentos na proposta formativa que lhe é proporcionada. Um sistema pouco coerente não é exigente.

Podemos também questionar o fenómeno do “estreitamento” do currículo provocado pela importância que a avaliação externa ganhou no nosso sistema educativo e considerar este efeito dos exames como facilitismo?
Os exames têm sido entendidos como a garantia de uma boa implementação do currículo e
um fator de promoção de equidade, num quadro de identificação e promoção tanto da excelência como da exigência.
Mas a inegável importância dos exames, principalmente no Ensino Secundário e no caso dos alunos que pretendem ingressar no Ensino Superior, tem provocado alterações significativas no currículo, nas metodologias e nas práticas avaliativas. A pressão colocada sobre a Escola, com maior ou menor profundidade, têm vindo a aumentar a importância da preparação para o exame em detrimento da exploração integral do currículo. Será exigente privilegiar um objetivo de curto prazo na formação dos alunos?
A reflexão sobre a exigência e o facilitismo pode ainda ser estendida ao debate recente sobre o Perfil dos alunos à saída  da escolaridade obrigatória, ou na confrontação popularizada entre as competências “moles” (soft skills) e as entendidas como “duras” (hard skills). A tradição de valorização (talvez sobrevalorização) das competências “duras” produziu um conjunto de práticas docentes e de organização escolar que se consolidaram no sistema escolar, em que as competência académicas e mensuráveis são claramente as mais valorizadas.
A recente, mas crescente, valorização das competências “moles” vem colocar em causa o conceito de exigência, ao mesmo tempo que exige dos professores um conjunto de práticas letivas e de avaliação muito mais difíceis e mais exigentes, por implicarem uma mudança no próprio conceito de exigência.

Avaliar os alunos por meio de exames e teste standartizados é mais fácil, mas é pouco ambicioso na identificação de algumas competências de importância crescente.
Por um lado estamos a despertar para a necessidade (e para o mérito) de tentar formar jovens que sejam especialmente competentes em domínios como a criatividade, a comunicação, a liderança, a consciência ambiental, social e política, para melhor dar resposta a um cenário de mudanças sociais que apenas começa a ser vislumbrado. Por outro lado, enquanto a Escola se tenta adaptar a um contexto social mais atual, outra parte da mesma sociedade espera da Escola os procedimentos tradicionais - standartizados e homogéneos - por serem mais facilmente mensuráveis e comparáveis, porque assentam em competências académicas com elevado grau de especificidade e se reportam a um contexto particular.




O Sistema Educativo, a Escola e os Professores debatem-se atualmente com desafios extraordinários. A Escola tenta descobrir novas formas de exigência, enquanto uma parte da sociedade continua a esperar dela que faça como sempre fez, ou seja, como é mais fácil fazer.

No entanto, as evidências de facilismo generalizado, considerando como beneficiários da facilidade os alunos, ou o próprio sistema educativo, são vagas e pouco sustentadas.
Não é comum encontrar referências à Escola do passado como facilitista - a ideia de rigor e exigência do passado é uma ideia sólida e não são muitos os que argumentam noutro sentido.
No presente, os elevados níveis de retenção dos alunos com um desempenho académico mais baixo e os processos de seriação e seleção impostos aos alunos com melhor desempenho escolar ilustram um cenário onde as facilidades não são claras, nem frequentes.
As opiniões que defendem uma ideia de Escola facilitista identificam exemplos, comparam a realidade atual com a de antigamente e enumeram vários fatores que ilustram o suposto facilitismo. Importa questionar a representatividade e a relevância estatística dos exemplos arrolados para fazer a ilustração da escola facilista e, adicionalmente, identificar as evidências de que temos um sistema educativo exigente que proporciona uma formação de qualidade. Os estudos internacionais apontam claramente para uma melhoria continuada do nosso sistema escolar, nos diferentes domínios de formação e nos diferentes níveis de formação. Para além de estudos em contexto escolar, existem indicadores claro de que os alunos do nosso sistema de ensino têm facilidade em integrar programas de formação e de investigação na generalidade dos países desenvolvidos, bem como em integrar o mercado de trabalho, dentro e fora do país.
O facilitismo é um conceito pouco exigente.

Texto publicado originalmente no suplemento de Educação do Jornal de Letras nº 1257